A linhagem das Carmenets
A linhagem das Carmenets
26/10/2020

Rodrigo Canabrava WSET3

Este texto foi resultado da apresentação de tema Merlot feita na Confraria de Degustação 5 da SBsomm, em abril de 2019, e publicado inicialmente no blog Sobre vinhos e afins.

Existem provavelmente mais de 10 mil variedades de uva vinífera (Vitis vinifera) no mundo. De acordo com a ampelografia - a área de conhecimento que estuda e classifica todas essas variedades - essa imensa diversidade que temos foi gerada a partir de cruzamentos entre variedades diferentes, ocorridos nos vinhedos, de forma natural ou provocada pelo ser humano. Isso significa que as variedades que temos hoje possuem relação de parentesco - comprovados nas últimas décadas com testes de DNA - que permitem agrupamentos em 'famílias' (ou linhagens) de cultivares.

A Carmenet representa talvez a mais influente dessas linhagens, no mundo atual. Ela engloba, grosso modo, as variedades tintas bordalesas, incluindo as onipresentes Cabernet Sauvignon e Merlot, a primeira e segunda variedades mais cultivadas no mundo. Carmenet é um nome histórico da Cabernet Franc, considerada o 'patriarca', o antecessor das outras variedades que compõem a 'família'. 

A principal característica dos membros dessa linhagem é a capacidade de produzir metoxipirazinas, compostos aromáticos que remetem ao pimentão. Assim como a Cabernet Franc, todos os descendentes têm tendência a gerar esses aromas nos vinhos, alguns mais, outros menos.

ORIGENS

Além das variedades bordalesas, testes de DNA comprovaram a existência de laços genéticos entre a Cabernet Franc e variedades autóctones do País Basco espanhol. Apesar de ser impossível determinar qual é a variedade 'pai' e qual a variedade 'filho' sem a identificação da 'mãe', a teoria mais aceita atualmente é que a Cabernet Franc tenha gerado descendentes no País Basco, e posteriormente tenha sido levada para Bordeaux, por peregrinos que retornavam de Santiago de Compostela. No País Basco, existe um clone de Cabernet Franc, chamado localmente de Acheria.

Segundo essa hipótese, ela deve ter chegado em Bordeaux antes do Século XVIII, onde cruzamentos naturais deram origem à Cabernet Sauvignon (mencionada pela primeira vez em 1777, em Pauillac), Merlot (1784, no Libournais) e Carmenère (também em 1784, em Bergerac). Cruzamentos naturais eram muito mais comuns à época, já que os vinhedos eram tradicionalmente cultivados com variedades misturadas. De Bordeaux, a Cabernet Franc teria sido levada ao Loire, que hoje em dia é sua região de maior destaque (já que na região mais famosa do mundo ela foi ofuscada pelos seus pósteros Cabernet Sauvignon e Merlot).

QUEM É QUEM

Além da Cabernet Franc e suas 3 sucessoras de Bordeaux, a família inclui diversas outras descendentes diretas ou indiretas; sejam elas atualmente cultivadas ali, ou em outras regiões do mundo. Por outro lado, são consideradas membros dessa família duas variedades que não descendem da Cabernet Franc. São elas a Fer Servadou (variedade importante do sudoeste francês) e a Petit Verdot (variedade minoritária no corte bordalês).

Vale ressaltar que a Malbec, apesar de ser cultivada em Bordeaux e de ter parentesco com a Merlot, não faz parte das Carmenets, e sim de outra família, das Cotoïdes. O mesmo ocorre com a Sauvignon Blanc, apesar do parentesco com a Cabernet Sauvignon e da propensão a produzir pirazina. E para citar toda a lista de variedades bordalesas, Sémillón e Muscadelle também não possuem nenhum parentesco com nenhum membro das Carmenets.

Este texto não tem a pretensão de listar exaustivamente todos os membros conhecidos da linhagem (quem tiver interesse, pode se aprofundar com o material citado nas referências). Aqui, são listados apenas os membros mais relevantes para a composição da árvore genealógica, até as variedades bordalesas, as estrelas da família.

Árvore genealógica das Carmenets. Em azul, variedades que pertencem à linhagem. Dentro da área rosada, as variedades cultivadas em Bordeaux.


  • Cabernet Franc: é considerada o patriarca da família. Possui pele fina, gera vinhos elegantes, aromáticos, de corpo médio a leve, pouca carga tânica, cor pouco intensa, e frequentemente, com traços de pirazina. Tem ciclo relativamente curto, se adaptando razoavelmente bem a climas oceânicos.
  • Hondarribi Beltza: variedade usada no País Basco espanhol, possui relação genética com a Cabernet Franc. Atualmente, acredita-se que ela seja a descendente, mas não está descartada a hipótese de que seja o contrário.
  • Cabernet Sauvignon: cruzamento da Cabernet Franc com Sauvignon Blanc. Possui pele grossa, gera vinhos de cor e corpo um pouco mais altos que sua progenitora, porém de alta acidez e grande carga tânica. Tem ciclo longo e alta probabilidade de manter os aromas de pirazina.
  • Merlot: cruzamento da Cabernet Franc com uma variedade chamada Magdeleine Noire des Charentes. Charentes é a região ao norte de Bordeaux, mais conhecida pelo cognac do que por vinhos. A Merlot gera vinhos de bom corpo, cor intensa, e taninos macios. Apesar de ter o 'gene da pirazina', seu ciclo curto permite que atinja facilmente sua maturação fenólica, eliminando esses aromas.
  • Merlot Blanc: cruzamento da Merlot com uma variedade chamada Folle Blanche (variedade usada na produção de cognac e armagnac). A Merlot Blanc é uma variedade muito rara, com cultivo residual em Bordeaux.
  • Fer Servadou: também conhecida apenas por Fer, acredita-se que tenha sido domesticada de vinhas silvestres. Não é permitida em Bordeaux, mas é uma variedade importante do sudoeste francês. Por falta de outros parentes, e por ser progenitora da Gros Cabernet (ver abaixo), é considerada um membro da família.
  • Gros Cabernet: resultado do cruzamento de Hondarribi Beltza e Fer, está quase extinta. Sua principal relevância foi gerar a Carmenère.
  • Carmenère: cruzamento da Cabernet Franc com Gros Cabernet, possui duas vezes o 'gene da pirazina'. Para piorar, possui ciclo muito longo, e dificilmente atinge uma maturação adequada. Gera vinhos de cor intensa, corpo médio, boa carga tânica, e muita pirazina. Foi extinta de Bordeaux pela filoxera, e redescoberta no Chile.
  • Petit Verdot: provavelmente original dos Pireneus, não possui nenhum parentesco identificado com outras variedades. Por falta de outra família, foi incluída como Carmenet por aproximação geográfica. Também tem ciclo longo, e dificuldade de atingir uma maturação adequada, por isso tem participação marginal em Bordeaux.

NA FRANÇA

Hoje, a grande expressão da Cabernet Franc está no Vale do Loire principalmente entre Saumur e Tourraine. Em Bordeaux, no entanto, ela quase sempre cede os holofotes para suas descendentes.

Em Bordeaux, a Cabernet Sauvignon predomina nas sub-regiões de Médoc e Graves (vulgo margem esquerda), pois sua maturação é auxiliada pelos solos ricos em seixos (graves, em francês), que além de garantirem uma melhor drenagem dos solos, absorvem calor, que é repassado às vinhas. A Merlot, nessas sub-regiões, aparece como auxiliar, fornecendo um pouco mais de corpo e cor, além de taninos mais macios. A Cabernet Franc aparece em terceiro, usada principalmente como 'rede de segurança' contra anos de tempo muito ruim.

No entanto, no restante Bordeaux, a Merlot predomina largamente, com o dobro de área plantada. Os solos argilosos da margem direita retém umidade, e não favorecem a Cabernet Sauvignon. A Merlot, variedade mais precoce, não tem problemas em atingir a maturação, e domina os vinhedos; já a Cabernet Franc entra como variedade auxiliar mais importante.

As três também possuem papel importante no sudoeste francês, sendo protagonistas em Bergerac, Côtes de Duras e Côtes du Marmandais; e frequentemente coadjuvantes em diversas outras apelações.

Carmenère e Petit Verdot dificilmente conseguem atingir uma maturação ideal em Bordeaux, e não conseguem alcançar grandes expressões em nenhuma região francesa.

NO MUNDO

Cabernet Sauvignon e Merlot são cultivadas em qualquer país que se produz vinho; são respectivamente a primeira e segunda mais cultivadas do mundo, e também as duas com maior taxa de crescimento. Mas se em Bordeaux, a Merlot predomina largamente, no resto do mundo, a Cabernet Sauvignon costuma ser a protagonista. Em muitos casos, a Merlot é vista normalmente como uma coadjuvante, mesmo que muitas vezes seja uma coadjuvante de respeito. São exemplos a Califórnia, Austrália (Western Australia), Toscana, Chile (Vale Central), África do Sul, Espanha (Catalunha e Navarra) e Argentina.

Por outro lado, tal como ocorre no Libournais, algumas regiões do mundo têm privilegiado a Merlot, devido à dificuldade de se obter uma maturação consistente da Cabernet Sauvignon, seja por clima mais frio, seja por alta probabilidade de chuvas no verão. São exemplos o Vale dos Vinhedos, nordeste da Itália (Trentino, Friuli e Vêneto), Suíça (cantão de Ticino), Romênia, Nova Zelândia e Uruguai.

Onde a Merlot se dá melhor, em geral, a Cabernet Franc também costuma ter bons resultados. No entanto, não costuma ter a mesma popularidade. Fora da França, as regiões onde ela tem maior relevância são o nordeste da Itália, e na Argentina.

A Carmenère ressurgiu no Chile, onde até 1996 era tomada por uma Merlot 'diferente', e encontrou ali um novo lar. Também no nordeste da Itália, tem sido redescoberta, em meio a vinhas de Cabernet Franc. A Petit Verdot tem mostrado bons resultados em locais de clima mais quente (do que Bordeaux), mas ainda está longe de ser uma tendência em qualquer lugar do mundo.


REFERÊNCIAS

Este texto foi inspirado no texto The Noble House of Carmenet, escrito inicialmente por Brian Croser, e publicado no site da Jancis Robinson. Além do mencionado texto, também fez parte das minhas referências a 'fonte', isto é, o livro Wine Grapes da própria Jancis Robinson.

CRÉDITOS

A imagem da publicação (vinhedo de Cabernet Franc) foi obtida em Commons Wikimedia é reproduzida sob licença. O diagrama da árvore genealógica foi produzida pelo autor deste texto, e autor do blog Sobre vinhos e afins, onde foi publicado originalmente.

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